Com razão, os comentários do deputado Marco Feliciano sobre “africanos” têm gerado grande revolta. Ainda assim, muitas pessoas têm se perguntado: como é possível que um homem claramente descendente de negros faça comentários racistas? A resposta mais comum têm sido que ele nega sua ascendência – o que seria facilmente perceptível por sua peculiar escovinha, parte de um suposto passing. Entretanto, há uma resposta mais precisa e interessante. Poucos a cogitaram porque demanda compreender um pouco mais como funciona a ideologia pentecostal, então tentarei apresentá-la.
Quando se fala do racismo de Marco Feliciano, geralmente o interlocutor está pensando em termos bem diferentes dos do deputado. O racismo que se imagina é mais semelhante ao preconceito explícito do Sul dos Estados Unidos há algumas décadas – não por acaso, o que aparenta ser o modelo-padrão para estudo acadêmico sobre racismo. Nesta ideia, a diferença entre as raças é essencial: a pessoa negra foi feita diferente, com vários atributos inescapáveis (geralmente, negativos) e isso não pode ser mudado.
A ideia do deputado Feliciano – e, por extensão, de muitos pentecostais – é sutil mas marcantemente diferente. A “maldição sobre a África” não é uma propriedade essencial dos “africanos”. Antes, é mais uma consequência contingente de um ato de alguém no passado remoto. Na prática, é um detalhe facilmente alterável. E como se altera? Pela conversão, pois “nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus”. Isto vale não só para os “africanos”, mas para qualquer pessoa sobre quem incida uma “maldição”, aliás. “Maldições” tornam-se apenas detalhes pontuais, tão fáceis de se remover quanto uma verruga no dedo. Na verdade, todos estaríamos sob uma maldição muito mais grave, oriunda do pecado original – mas também tão facilmente resolvível quanto qualquer outra.
Entretanto, que diferença isso faz? É uma afirmação tão ignorante e racista quanto a anterior, poder-se-ia dizer.
Pois bem, se seu parâmetro de avaliação é a ignorância, então realmente não faz muita diferença. A posição do Feliciano é, talvez, até mais desinformada que o racismo racialista dos confederados. Do mesmo modo, esta é certamente uma posição racista – uma conclusão pouco interessante, porém, dada a amplitude quase amorfa que o termo “racismo” adquiriu.
O interessante está nas consequências da ideologia destes pentecostais. Se estas ideias sobre maldição demandam algum comportamento diferente, é o ato de priorizar a ajuda aos “africanos” – e, consequentemente, um grande subconjunto dos negros – porque eles precisariam muito mais de ajuda. Não que isto ocorra – acredito que não exista profiling racial significativo na evangelização pentecostal, nem contra nem a favor de pessoas negras – mas seria a única conclusão possível.
Na prática, esta “teoria da maldição” fornece um ferramental para explicar alguns fatos sobre a situação do negro da sociedade sem pôr o peso por esses fatos na pessoa negra. Pode até ser que a maior parte da população carcerária seja negra, ou que a África subsaariana seja uma região cheia de problemas, mas isto é consequência da “maldição”, não da essência do “africano”, que pode e deve ser ajudado por seus irmãos pentecostais tanto quanto qualquer outro “povo”.
Assim, fica claro por que Marco Feliciano não vê contradição entre ter cabelo crespo e falar sobre a “maldição sobre a África”. Outras reflexões são possíveis sobre o tema, mas não faz sentido tentar fazê-las sem levar em conta o que o pastor quis dizer nem compensa pôr palavras em sua boca, como se ele já não houvesse emitido asneiras o suficiente.
Compartilha-se uma foto de Feliciano com sua mãe e seu padrasto, que é negro, frequentemente seguida por comentários sobre o “conflito familiar”. Afora a maior omissão destes comentários – a satisfação do padrasto, tornado mero objeto do discurso, perto do enteado – percebe-se claramente que o deputado não demonstra ódio algum a ele (e a sua mãe) mas antes parece bastante afetuoso. Como pode, um homem que odeia negros, agir assim? Pode-se fazer uma longa lista de argumentos intricados, mas acredito que o que escrevi acima pode dar uma luz mais convincente a este comportamento.
Qualquer dia, vá a uma igreja pentecostal, preferencialmente em uma região mais pobre ou periférica. Note como há muitas pessoas negras participando alegra e vivamente do culto. Haverá vários sacerdotes negros guiando o culto. Eu fui evangélico até os doze anos, e uns três quartos da liderança da igreja que eu frequentava era inequivocamente negra. Tenho parentes que vão lá e, por isso, eventualmente, passo pela igreja – se algo mudou, é que há ainda mais pessoas de pele ainda mais escura em posições ainda mais altas.
A curiosa verdade é que há poucos lugares no Brasil tão cegos à cor da pele, tão abertos à pessoa negra, quanto uma igreja pentecostal. Não que não haja racismo na pessoa pentecostal – por definirmos o racismo como algo que impregna tudo, inexoravelmente, encontraremos atitudes racistas, especialmente fora do círculo da igreja. Entretanto, se a ideologia pentecostal, com toda sua ignorância e fundamentalismo, tem alguma influência nos relacionamentos raciais de seus fiéis, é para reduzir o preconceito e abrir portas na hierarquia clerical.
Não estou propondo que paremos de criticar Feliciano e seus seguidores. De maneira alguma! Sua crença ainda é ignorante no final das contas, e suas posições sobre homossexualismo são bem menos benignas. Acredito que a maneira como resolveram se opor a Feliciano é inadequada e até perigosa, mas se opor a ele é uma necessidade.
Meu ponto é outro: há uma crítica que é, no mínimo, ignorante e, no máximo, injusta. É compreensível que a façam, posto que poucos da intelligentsia conhecem como uma igreja pentecostal pensa e funciona. Ademais, a reflexão sobre o racismo entre alguns de nós é pouco sutil, até viciada, e nos acostumamos a respostas impulsivas, automáticas. Por mais que Marco Feliciano, não só na CDH, mas até como deputado, seja um erro, gostaria que nós incidíssemos em menos erros ao criticá-lo. No mínimo, por honestidade intelectual, mas também porque há milhões de fiéis com quem temos de conversar, mas que não debaterão conosco se distorcermos suas crenças.