Lei Ficha-limpa

A principal razão para eu não ter assinado o abaixo-assinado pela Lei Ficha-limpa foi um engano. Eu julgava a lei por uma versão inicial, em que a mera denúncia seria suficiente para vetar a candidatura. Essa proposta é tão absurda que não poderia apoiá-la. Posteriormente, descobri que a lei havia evoluído um tanto: agora é necessária ao menos uma condenação por mais de um juiz, a partir de uma denúncia de um Ministério Público.

A proposta, porém, ainda assim era polêmica. Por exemplo, a lei poderia ferir o princípio da presunção de inocência. Os defensores da lei argumentaram que o princípio vale para o Direito Penal, mas não para o Direito Eleitoral. Não posso julgar a validade desses argumentos. Para mim, é claro que o candidato pode perder um direito sem ser condenado, mas há dispositivos semelhantes em outros contextos, como a reputação ilibada exigida dos ministros do Supremo Tribunal de Justiça. Deixo o julgamento para tribunais superiores, que, creio, podem até vetar a lei, se for realmente inconstitucional.

Nota-se também que a lei pode ser injusta, ao punir o político menor deixando passar o “peixe grande”. Seria talvez até pesada demais, punindo desvios catalogados mas menores. De fato, ocorrem tais casos. Entretanto, o rigor não é, necessariamente, mau negócio. Vários apoiadores da lei têm em mente os políticos suspeitos mais poderosos, mas não é razoável que não se cometam pequenas diabrites também.

Assim, achei interessante a aprovação da lei. É resultado de uma mobilização realmente popular – que seja rotulada de medioclassista, pois classe média também é povo. Ataca um problema que existe de fato, que é o entricheiramento de criminosos na política. Ademais, mesmo que não venha a ser uma boa solução, é um atendimento razoável a um pedido muito justo: não ser governado por criminosos.

Entretanto, ainda assim eu não assinaria o abaixo-assinado. Primeiro, porque não é assim que eu quero a mudança. Vetam-se certos políticos mas é difícil construir e posicionar lideranças que os substituam, o que é mais importante. A lei está associada – embora não dependa logicamente de – uma visão que tende a piorar essa situação: a ideia de que a política é intriscecamente ruim, que pensar em política é ruim, e que o pensamento crítico em política é sempre a oposição a todos os lados e opiniões. Quase todo mundo que conheço que apoiou o projeto pensa mais ou menos assim. Esse pensamento é muito pernicioso. A lei não depende deste pensamento, nem está inequivocamente ligado a ele, mas foi nutrida nesse ambiente, o que me incomoda.

Além disso, o político desonesto mas hábil pode esquivar-se, mas o pequeno opositor pode, sim, ser vítima injustiçada da lei. Pior ainda é lei se tornar uma arma do transgressor que inspirou a lei. Isso não só não é impossível como já aconteceu em outras situações. Eu me preocupo muito mais em ter um bom candidato em que posso votar que em vetar um mau candidato. Pior que deixar passar um mau político é reter um bom candidato.

Por fim, não quero perder tempo com uma lei que não corrija a própria justiça brasileira. A impunidade dos corruptos é apenas uma das consequências da lentidão judiciária. Mais que isso: uma justiça ineficiente é a causa da impunidade em geral, da violência e do desrespeito à lei. Essa lei é, então, um truque de espelhos para disfarçar o problema maior sacrificando uns bodes expiatórios. Se o gargalo jurídico for resolvido, uma gambiarra como a Lei Ficha-limpa não seria  necessária.

Pode-se dizer que a situação atual é crítica e uma solução ad hoc é necessária. Eu não acredito nisso. Desde que entendo o que é um deputado, vejo a política melhorar, subir de nível. Ademais, muitos desses comentadores sequer entendem o que é efetivamente um crime, e julgam que comportamentos antipáticos deveriam vetar o candidato. Certamente nem todos os apoiadores da lei são tão ingênuos, mas a maioria dos que conheci são.

Ademais, está havendo uma tendência, pouco destacada mas existente, em direção a uma justiça mais eficiente. Por exemplo, o Conselho Nacional de Justiça trabalha em projetos interessantes que, embora eu não conheça em profundidade, parecem estar dando resultados. Prefiro ver onde isso vai dar. Ainda assim, se me apresentarem um abaixo-assinado de um projeto de reforma do Judiciário com o qual eu concorde, contem com minha assinatura. Infelizmente, a Lei Ficha-limpa não se encaixa nessa categoria.

Eu não tenho a repulsa que várias pessoas têm pela lei e seus apoiadores. Entendo as motivações do movimento, e concordo com várias. Achei o movimento, em sua estrutura e dinâmica, muito democrático: o povo participou ativamente da criação de uma lei relevante que foi aprovada. Gostei de ver isso, mas não apoio a lei. Se não chego a ser um opositor, ao menos me reservo o direito de não participar do movimento. Eu mesmo achei minha posição estranha, mas porque, entre discussões polarizadas e extremas, parece que só se pode ser violentamente a favor ou virulentamente contra alguma coisa. Não é assim e, por isso, digo confortavelmente que desprezo a Lei Ficha-limpa.

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  1. […] impunidade, mas sim a justiça, lenta e opaca. Se nossa justiça fosse um pouco mais eficiente, a Lei da Ficha-limpa  não seria necessária, por exemplo. Infelizmente, os manifestantes focaram pouco no Judiciário, […]

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