Utopia

Quando disse que o problema do Fora do Eixo era a utopia, o Manoel Galdino conjecturou-me vítima de uma possível utopiafobia. Será que, onde eu via utopia, logo depois via um problema?

A conjectura do Manoel é injusta. No caso do Fora do Eixo, primeiramente vi o problema – apenas por alto, confesso – das discussões sobre o financiamento do ~coletivo~, as supostas explorações de seus membros etc. Só depois o liguei à utopia. Ademais, não sou “contra utopias”. Pelo contrário, admiro muito quem se entranha em uma delas. O utopista praticante supera a ideologia bocó do “seja realista, peça o impossível” em favor do “sou realista, faço o impossível”, que é muito mais interessante. Ele é assertivo, se põe como um agente, não como um sujeito cujo direito alguém tem de lhe dar. É corajoso, porque se põe a criar o que sequer pode ser.

Só que a impossibilidade da utopia é um problema em si. Quase todas estão fadadas a não se realizar; nas que se realizarem, não se reconhecerá a ideia original. No pior cenário, os utopistas sequer sabem disto: olham para o que existe com um desdém jacobino, gritam que jogarão tudo fora e farão o novo, o perfeito. Foi isto que, me parece, aconteceu com o Fora do Eixo.

Uma moça reclamou que trabalhava de graça. Mas o que ela esperava quando se dispôs a participar de um projeto “desmonetizado”? Que fosse ser livre da ~lógica do capital~, exceto quanto a receber salário? Esta moça acusou uma mulher do projeto de explorá-la, mandando-lhe que trabalhasse exaustivamente. Se for verdade, por que faltou a esta mulher o bom senso de tratar bem uma voluntária? Provavelmente ela tem, em sua cabeça, um ideal do projeto que justifica até agir de tal maneira. Para ambas, a utopia, realizada, é uma coisa muito feia. Isto ficou mais claro quando o projeto foi escrutinado no Roda Viva: a ilusão do ideal dissolveu-se em público.

Já passei por isso também. Só meus colegas sabem que projetos gerimos, e os resultados lamentáveis que se sucederam. Para mim, foi uma excelente aprendizagem. Mais ainda valem as utopias que deram certo e se corromperam. Penso, por exemplo, no governo Lula, que começou com grandes esperanças. Terminou bem diferente do que imaginávamos; se muito, uns 10% do que se esperava foi alcançado. Ainda assim, valeu a pena. Outro exemplo é a Wikipédia. Impossível ela não é, mas o que não faltam são experiências ruins nela; ainda assim, é uma das melhores coisas que já fizeram na Internet. Tentaram o impossível, conseguiram bastante mas perdeu-se a inocência.

Há muito disso no Fora do Eixo. Não os conheço, mas o Mídia NINJA foi uma coisa surpreendentemente relevante e construtiva. (Que alguns tolamente vejam nele o substituto do jornalismo é um problema dos tolos, não do projeto.) Aparentemente, o Fora do Eixo também produziu muito conteúdo cultural, apoiou bandas, organizou espetáculos, gerou debate. Se há membros que hoje estão insatisfeitos, é porque não lhes satisfaz o que foi possível fazer.

Com o tempo, porém, temos de superar essa antipatia com o possível, né? Não podemos nos entregar tão facilmente aos ideais para sempre, é preciso tornar-se criterioso com meus projetos. Mais importante ainda, é indispensável aprender a respeitar, e até a admirar, as coisas que são imperfeitas. Meus amigos me perguntavam por que não votaria na Marina Silva; eu poderia responder que não troco mais utopias por realidades imperfeitas mas mais evoluídas.

A utopia é uma necessidade. É pela utopia que aparece o novo. Entretanto, o fascínio com estes ideais platônicos é somente uma fase de nossa evolução. Depois de pedirmos o impossível, e de tentarmos fazê-lo, aprendemos a ver a beleza e a vastidão das possibilidades, a trabalhar com elas. Afinal, uma utopia bem-sucedida torna-se tão sem graça quanto uma coisa que existe.

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