Estou fazendo um curso sobre Relações Internacionais na plataforma Trilhas do Instituto Legislativo Brasileiro. Tive de participar de um fórum sobre a Primavera Árabe. O texto ficou grande, mas não sei se está bom e certamente está desatualizado. De qualquer forma, como deu um belo trabalho que quero publicar coisas aqui, ei-lo.
Possíveis causas
As manifestações populares contra governos autoritários no Oriente Médio árabe exemplificam bem as complexidades inerente ao estudo das relações internacionais. Mesmo sendo o Oriente Médio uma região de valor estratégico e, portanto, um objeto de inúmeros estudos pormenorizados, a chamada Primavera Árabe foi uma surpresa tanto para os governantes dos países quanto para os atores internacionais estrangeiros.
Um fator frequentemente apontado como causa dos eventos foi a disponibilidade de softwares online para redes sociais que permitiriam que os protestos fossem organizados. Embora pareça justo atribuir um papel considerável à Internet nas revoluções, seja como meio de comunicação dos organizadores, seja como fonte de informação política, eu me alinho aos analistas que julgam este papel exagerado. Em que pese todas as vantagens de se organizar uma revolução utilizando ferramentas modernas, já houve reviravoltas tão amplas sem tanto suporte tecnológico, como a queda do Comunismo na Europa Oriental e a Primavera dos Povos em 1848.
O combustível dos protestos, eu diria, é a existência de uma classe média jovem, bem educada e sem perspectivas. Assim, não é de se surpreender que a onda de mudança surgisse justamente na Tunísia, um país com população relativamente bem educada, e seguisse para o Egito. A faísca que estourou as revoltas, como sabemos, foi o suicídio do jovem tunisiano Mohamed Bouazizi que explicitou a insatisfação popular que já existia, mas cuja repressão levou a se esconder. Sua atitude o tornou um mártir da causa.
As alianças com o Atlântico Norte e seu efeito sobre os regimes
Também é notável que as revoluções – e as quedas – tenham começado e obtido maior sucesso na Tunísia e no Egito. Os governantes depostos destes países mantinham boas relações – e até alianças – com as potências do Atlântico Norte. Há quem comente que, justamente por isto, estas nações tenham sido mais reticentes em esmagar as revoltas. Estados Unidos e Europa, assim, seriam o superego destes ditadores, impedindo que manifestem a violência vista em países fora deste eixo, como Síria e Líbia.Por outro lado, esta tese falha quando nos lembramos que o governo do Bahrein, importante aliado dos EUA onde fica a sede da frota americana no Oriente Médio, tem combatido os protestantes com violência não muito diversa da vista na Síria, inclusive com apoio de soldados sauditas.
É possível que o custo de se abrir mão do governo aliado no Bahrein fosse muito maior, na perspectiva das potências ocidentais, do que o custo de dispensar Hosni Mubarak, que fora até reticentemente apoiado pelos líderes estadunidenses. É compreensível: o Egito não possui um movimento fundamentalista forte, tem uma população diversificada e o Exército egípcio seria o fiel da balança a garantir estabilidade e um mínimo de laicidade ao estado; além disto, estrategicamente sua importância é grande mas menor que a de outros países na região. Nesse contexto, a queda de Hosni Mubarak é um evento sem grandes riscos. Além disto, não obstruir sua queda permitiria às potências ocidentais ressaltar sua imagem de defensores da democracia.
Já o Bahrein, além de ser estrategicamente bem localizado próximo do Irã, já possuir pesados investimentos militares dos americanos e ainda estar em área de forte influência Irã, tanto pela proximidade quanto por sua maioria populacional xiita, seria um aliado muito mais valioso para os Estados Unidos – a ponto da potência fazer vistas grossas ao abuso dos direitos humanos.
As perspectivas de Israel
Dos países não abalados diretamente pela Primavera Árabe, o mais afetado e mais apreensivo é Israel. A pequena potência do Oriente Médio viu um dos seus raros aliados na região, Mubarak, cair, e não sabe o que esperar do Egito. Sua preocupação é tanta que, no início das revoluções, seu primeiro-ministro chegou a criticar os Estados Unidos por não dar apoio ao ditador egípcio. Provavelmente Bahrein também é alvo de sua aflição, posto que a queda do governo atual aumentaria as possibilidades de influência do Irã.
Mesmo as dificuldades que Assad vêm passando podem ser negativas para a nação judaica. Embora a Síria esteja, em tese, em guerra com Israel, Assad se mostrou um governante relativamente transigente – houve avanços em negociações com Israel, e até início de negociações de paz mediadas por terceiros em seu governo. Mesmo que Assad não se mostre um aliado de Israel e seja até mesmo hostil, não se sabe quem poderá subir ao poder em seu lugar.
(Embora a Síria seja constantemente descrita como um aliado do Irã, o relacionamento do governo sírio com o país persa é muito mais conturbado. Algumas fontes que leio, como Gustavo Chacra, afirmam que interesses comuns podem levar as duas nações a ações conjuntas, mas a Síria tem seus interesses próprios, por vezes conflitantes com os dos aiatolás. Se assim não fosse, o relacionamento com Israel seria muito pior, e Assad não tentaria passar a imagem de governante laico moderado para o Ocidente. Com a queda do médico autocrata, a influência iraniana na Síria poderia ser bem maior – ou não, mas a política externa realista de Israel não parece estar disposta a fazer esta aposta).
O conflito na Líbia
Os levantes na Líbia, por sua vez, parecem seguir um padrão diferente. Ao contrário do que ocorrem no Egito, Tunísia etc. os protestos começaram aparentemente da mesma maneira que nestes países mas a repressão violentíssima de Kadafi acabou resultando em uma guerra civil. (Quando vi que os protestos “pularam” da Tunísia para o Egito, perguntei-me por que não passaram pelo país aí entre os dois – e depois me lembrei que era a Líbia, ainda mais repressiva. Ao saber que os protestos estouraram lá também, senti certa tristeza, porque sabia que não terminariam sem muito derramamento de sangue – e que os manifestantes teriam de terminar o que começaram, sob pena de morrerem todos).
A Líbia é um país um tanto diferente dos demais. Sua população é dividida em tribos, que se aliam ou se confrontam entre si. Quando as manifestações começaram, algumas tribos viram a oportunidade para tentar derrubar Kadafi, e por isto a situação degenerou em guerra civil.
As potências do Atlântico Norte ficaram um tanto confusas sobre o que fazer, até decidirem intervir. O posicionamento mais curioso, para mim, foi o da França de Sarkozy, que chegou ao ponto de reconhecer as forças rebeldes ainda fracas como governo legítimo da Líbia. A própria intervenção dos outros países, porém, levanta uma série de questões. Primeiramente, retiraria ela a legitimidade dos protestos? Uma intervenção estrangeira poderia servir como evidência para o discurso kadafista de ingerência internacional.
Ademais, se a intervenção é apenas para impedir crimes de guerra, os interventores não estarão alinhados aos rebeldes. E se os rebeldes forem derrotados, como os países que intervieram iriam lidar com Kadafi, que tem longo histórico de suporte a causas terroristas, inclusive várias não direta ou claramente alinhadas com seus interesses? Por sinal, eu chuto (e aqui o chute é pessoal, não li isso realmente) que é possível Kadafi chegar a um acordo com os rebeldes, o que pode trazer bastante dor de cabeça às nações que intervieram.
Enfim, o conflito líbio tem um perfil diferente das demais revoluções árabes, e tem causado bastante transtorno às potências ocidentais. Seu desfecho é o menos previsível de todos, pois podem ser vários.