Os protestos de junho

Antes de mais nada, meus parabéns ao Movimento Passe Livre. Eu consideraria o aumento justo, e não sou, a princípio, a favor o passe livre. Ainda assim, após anos de trabalho, o MPL conseguiu impor reivindicações ao Estado e levar suas propostas do delírio adolescente à discussão nacional. A ideia do passe livre era absurda; agora, é pensável, plausível até. É um resultado excelente, ainda mais para um movimento grassroots sobre um tema que é, via de regra, considerado secundário. O momento foi crucial para seu sucesso mas o movimento agiu com competência.

Dito isto, o MPL tornou-se um detalhe, como indica sua ambivalência e a rejeição de sua pauta pelos manifestantes. O responsável pelo crescimento dos protestos foi, provavelmente, a Polícia Militar do Estado de São Paulo, ao reprimir violentamente os manifestantes. Não é novidade que a Polícia Militar é violenta, mas sua reação nesses dias foi de uma brutalidade surpreendente. Qual o propósito, por exemplo, de atacar jornalistas? A truculência tornou-se incompreensível; atacar a imprensa não foi apenas criminoso, revelou-se também estúpido, contraprodutivo até mesmo para os propósitos da polícia. Infelizmente, para tentar “mostrar seu valor”, a PM simplesmente se negou a fazer seu trabalho nos dias seguintes, permitindo que o caos tomasse as manifestações.

Como justificar um tiro de borracha em uma jornalista?

Como justificar um tiro de borracha em uma jornalista?

 

O que deveria, então, a polícia fazer? Deveria deter os vândalos que agiram nos primeiros dias, ao invés de atacar os manifestantes. Deveria também deter os vândalos dos dias seguintes, ao invés de se omitir. Que os defensores da PM tentem nos forçar uma falsa escolha entre a brutalidade e o caos apenas nos mostra sua limitação intelectual. Imagine se um cirurgião plantonista esquece um bisturi dentro de um paciente e, ante as reclamações, se recusa a trabalhar. Se este cenário é inaceitável, por que a polícia pode escolher entre trabalhar mal ou não trabalhar?

"Hey, onde vocês estão indo?" "Para a Bastilha!" "Vamos tomar a Bastilha e armar o povo!" "Não, vocês te

Por que quem defende a revolução na democracia…

Outras reações foram bem engraçadas. Muitos que viam com naturalidade dos vândalos nos primeiros dias entraram em pânico ante o crescimento dos protestos; viam neles uma “ameaça às instituições”. Só que o vandalismo dos primeiros dias também era uma ameaça às instituições. Se turbas puderam quebrar agências bancárias nossas instituições já estavam sob ataque: ali golpeava-se o Estado de direito, o direito de ir e vir, a segurança e a propriedade privada. Ali também se negava o valor da democracia: se o direito à manifestação pacífica não era suficiente, então de que ela nos serve?

...mas agora não é mais?

…esperava algo além do autoritarismo?

Se a minimização dos atos violentos dos dias iniciais foi um erro, mais absurdo foi o exagero em relação aos dias posteriores. Aparentemente, aqui povo na rua é início de golpe. Houve equívocos nas manifestações, como a presença de idealizadores da ditadura militar, skinheads (aparentemente, ao menos) e rejeição a partidos. Entretanto, exceto pelo último, estes provaram ser movimentos minoritários entre os manifestantes. Se tivéssemos, porém, de confiar nas descrições mais temporãs, acreditaríamos que no mínimo metade dos manifestantes usavam braçadeiras com o sigma e tanques já se aproximavam das sedes de governo.  Felizmente as únicas evidências do Golpe Militar eram alguns cartazes e comunidades no Facebook. Talvez devêssemos, além de vetar suas candidaturas, controlar o acesso dos militares a cartolinas e Internet?

https://twitter.com/relances/status/348591943426646019

Talvez seja injusto caçoar tanto desses prospectos: nunca presenciei um golpe no Brasil, talvez comecem assim. Entretanto, se a ideia de golpe já me parecia absurda naqueles dias e mostrou-se absurda posteriormente. Não só as Forças Armadas respeitaram a democracia como ficou claro que o manifestante não quis golpe algum, mas mudanças na democracia. Quando via essas pessoas inteligentes denunciando o Golpe Militar, o irmão socialista do Golpe Comunista, da Ditadura Gay e da Teocracia, tive a mesma sensação de ver um comunista hoje em dia. Que a velha esquerda nos parece anacrônica, já sabemos; será que podemos pôr, também, uma esquerda mais recente, moldada pela ideia do golpe, na caixa dos paradigmas ultrapassados? Não sei – mas esses dias trouxeram um indício de que a democracia é mais forte do que muitos acreditam.

Passados os protestos, não me surpreenda que tenham sido democráticos. Reconheci a ideologia que os molda: é o que me ensinaram na escola pública. Literalmente tínhamos aulas disso: nos ensinavam que “precisamos lutar por nossos direitos” (sempre indefinidos e sempre se expandindo), mas que “a corrupção é grande” e consome os recursos necessários para garantir nossas reivindicações. Entretanto, nós aprendemos também como a ditadura militar foi trágica e como a democracia, mesmo falha, é importante. O manifestante sabia que, seja como for, a democracia é melhor que um regime que lhe proibisse de ir à rua.

É compreensível que a rejeição aos partidos tenha assustado, mas foi um temor  infundado. O despropósito do medo, nós o vemos hoje, mas o que surpreendeu já naqueles dias foi a incapacidade da intelligentsia de aceitar esta rejeição. “Toda democracia moderna tem partidos”, se dizia, e é verdade. Entretanto, esta afirmação maquiava uma questão mais concreta. Toda democracia moderna tem partidos com fundo partidário e monopólio da representação, moldados por peleguismo  e corporativismo, sem identidade ideológica? Não, mas é isto que temos e foi isto que os manifestantes rejeitavam. “Sem partido” significava também “sem estes partidos”, “sem esse jeito de ser partido”. É lamentável os manifestantes partidários tenham sido agredidos, mas era previsível; não aconteceria o mesmo se desfraldassem bandeiras do PSDB em uma manifestação petista (ou vice-versa)? Foi um erro de algumas lideranças incentivar suas bases a ir à rua.

Os partidos foram banidos porque o motor de todo o movimento foi uma crise de representatividade. Se a pouca representatividade é um problema dos partidos, não se restringe a eles, porém. Um  grande número de setores que se uniu para dizer algo que não conseguiam antes. Havia ali muito da elite reacionária com seus cartazes contra Bolsa-Família e até alguns saudosos da ditadora, mas ali estavam também os movimentos sociais que lutavam contra sexismo, racismo e desigualdade – e havia algo em que concordavam.

Em espcial, havia um grupo  mal representado, tão mal representado que sequer tem nome, mas que poderia ser chamado de filhos das diaristas. Nem todos são filhos de diaristas, mas a expressão dá bem a ideia: jovens que cresceram nos anos 90 e anos 2000, filhos e netos de pessoas por vezes muito pobres que foram as principais beneficiadas pela redução de desigualdade resultante do controle da inflação e dos programas sociais. Estes jovens estudaram graças à universalização da educação: por vezes filhos de iletrados, são minimamente instruídos, muitos até em cursos superiores. Por pior que seja a educação que tiveram (e não foi necessariamente tão ruim), ela fez a enorme diferença entre não conseguir ler itinerário do ônibus e conseguir ler um post no Facebook. Eles também sabem o valor dos programas sociais bons em oposição aos assistencialistas (embora não necessariamente consigam entender os detalhes da diferença).

Eles não são representados no debate político. Seus pais são melhor representados, através da defesa de programas sociais. Felizmente, porém, o Bolsa Família não é tão necessária aos filhos; mais útil lhes seriam as duas principais reivindicações vistas nas ruas. Tampouco lhes representa, necessariamente, os movimentos de segmentos sociais, como os que combatem o racismo e o machismo. O filho da diarista não é necessariamente miserável, negro, gay ou favelado, a filha não se sente necessariamente oprimida pelo sexismo e muitos com certeza são religiosos – há uma miríade que não se encaixa nos grupos de interesse do progressismo. Note que eles não são necessariamente contra estes grupos, muito pelo contrário: havia entre os manifestantes muitos que também se sentiam representados por eles. O filho da diarista convive diariamente com amigos destes grupos organizados, os respeita e apoia. A defesa das minorias é mais regra que exceção entre eles. Entretanto, justamente por serem a nova classe média, não há grupo que represente estes jovens.

Neste sentido, o progressismo falhou com eles: focou-se tanto nos pais que se esqueceu dos filhos, focou-se tanto nas minorias que esqueceu a maioria. Tão fascinados estávamos com o avanço social (e devemos estar, mesmo: foi e ainda é um dos problemas mais urgentes do país), tão fascinados estávamos que nos acostumamos a minimizar e caçoar daqueles que reclamavam dos serviços públicos e da corrupção. É um cacoete que adquiriu-se ao responder à elite reacionária, que citavam estes problemas ao mesmo tempo em que criticavam o foco nos mais pobres, mas agora a crítica não vem só dela. Na rua, estavam o jovem do movimento negro, o jovem alimentado pelo Bolsa Família e o jovem pedindo para restringir a cidadania de quem a recebe, e todos tinham pedidos em comum.

O filho da diarista oriundo da escola pública foi apenas parte do movimento, mas me parece o perfil ideal para representá-lo porque torna os protestos inteligíveis. Ele representa a massa de pessoas que literalmente estudou na escola que é preciso protestar por direitos e que a democracia é o melhor caminho. Entretanto, ninguém haveria de se manifestar sozinho: qual o sentido de juntar cem pessoas na frente do Congresso Nacional? Há anos, ele ansiava por se manifestar, mas sem a massa crítica isto não faria sentido.

Por outro lado, os movimentos como a Primavera Árabe, o Occupy e os Indignados, embora nascidos em contextos bem diferentes, excitaram a imaginação do brasileiro. Quem quer que acessasse o Facebook veria reclamações e um clamor por manifestações populares.

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O clamor pelas ruas já existia há tempos; só não o levávamos a sério justamente por demorar para ter efeito

Se o desejo de ir pra rua crescia há tempos, e a inspiração estrangeira estimulava os ânimos, os protestos do MPL se tornaram um gatilho por uma curiosa e inesperada sequência de acontecimentos. No primeiro dia, foram muito bem-sucedidos em marcar presença; ainda assim, havia muito poucos participantes comparado com o que viria depois. Ademais, a aprovação dos protestos devia ser bem baixa na população. (Este é um ponto um tanto misterioso: manifestações do MPL já aconteciam há tempos e não juntavam tanta gente, nem ante vários aumentos. Talvez tivessem mais esperança pelo prefeito  ser petista? Talvez o achassem hipócrita por isso? Esta é uma boa questão para quem estudar os protestos.)

O mais relevante, porém, foi a brutal repressão da PM. Este também não é um fato bem explicado: que a polícia pode ser truculenta não é novidade, mas também não costuma ser tão violenta e tão desnorteada com a classe média, muito menos em eventos de alta visibilidade em áreas centrais da cidade, sem contar o ataque à imprensa. Será que resquícios da lua-de-mel que se seguiu a Tropa de Elite subiram à cabeça? Ou o “pedido de basta” da imprensa foi a causa? Esta é outra questão digna de atenção.

Se não compreendemos bem a causa, porém, a consequência da brutalidade foi clara: muito mais pessoas decidiram ir aos protestos, nem tanto para apoiar as causas do MPL, mas sim para se opor à incompetência ao lidar com os manifestantes. Deste modo, um movimento que já tinha alguma massa começou a ganhar ainda mais, de maneira espontânea. O espectador que via as manifestações em outros países e lamentava que “o povo é alienado” passou então a crer que finalmente chegara a Primavera Brasileira. Estas pessoas não tinham muitas pautas em comum – na verdade, discordam muito mais do que concordam – mas ainda assim passaram a ir às ruas junto com os outros manifestantes, enfim aplicando o que lhes fora ensinado. À medida que mais pessoas iam, mais pessoas ainda se sentiam impelidas a ir, e cada um levava sua cartolina. Enfim, tínhamos a nossa Primavera.

Sem um alvo fácil, como uma ditadura ou má economia, as demandas variaram mais que nos outros protestos ao redor do mundo. Ainda assim, duas se destacaram: melhores serviços públicos e o fim da corrupção. São pedidos naturais, posto que os serviços públicos ainda deixam muito a desejar, e há essa percepção geral de que no Brasil há muita corrupção. Eu, porém, acredito que o Brasil tem melhorado espetacularmente no que tange à corrupção e impunidade desde os anos 90. Há ainda impunidade, mas vem se reduzindo notavelmente. O abuso do poder não é mais, necessariamente, a principal causa impunidade, mas sim a justiça, lenta e opaca. Se nossa justiça fosse um pouco mais eficiente, a Lei da Ficha-limpa  não seria necessária, por exemplo. Infelizmente, os manifestantes focaram pouco no Judiciário, provavelmente por ignorância mesmo.

Os serviços públicos são um caso um tanto diferente pois, nesta área, a melhoria talvez possa ser mais veloz. Ainda assim, a qualidade de alguns serviços é resultado de uma escolha muito sábia, que foi universalizar antes de aprimorar. É o caso da educação e da saúde, casos em que se mostra a sabedoria da escolha: pessoas que, se sobrevivessem à diarreia na infância, cresceriam analfabetas hoje não morrem mais por doenças facilmente preveníveis e têm uma educação fraca mas significativa. Muito se reclama da qualidade da educação, e são reclamações válidas, mas é preciso ser justo: universalizá-la foi um ato hercúleo que fez capaz de usar a Internet pessoas que não conseguiriam, sem a universalização, ler uma placa. Parece pouco, mas foram estas pessoas que usaram o Facebook que sustentaram os protestos, foram as aulas precárias de História que as ensinaram a protestar. Alguns serviços parecem não ter melhorado porque se expandiram primeiramente – mas expandir é um avanço, logo os serviços melhoraram, sim.

No geral, as propostas que ecoaram nas ruas foram ruins. Um bom exemplo é a reserva de fração do PIB para educação e saúde. O problema de reservar um valor antecipadamente é que, se o valor for pouco, não pagará as contas, e se for muito, haverá desperdício. Alguém realmente acredita que um número redondinho como “10%” é exatamente o que é preciso para melhorar educação ou saúde? O problema talvez esteja mais na má gestão do que na falta de recursos. A melhoria da qualidade levará um aumento de custo considerável pois muitas pessoas que optam pelo serviço privado migrariam para o público, mas a melhoria em si não depende um valor reservado.

Muito mais se pode criticar sobre os pedidos das ruas, mas a crítica mais comum talvez seja a mais simples: são pedidos corretos demais. Afinal, quem não pediria melhores serviços e menos corrupção? Ser contra a corrupção é quase tão inócuo quanto ser contra o Mal; ser a favor de melhores serviços é quase tão inerte quanto ser a favor do Bem. Ainda assim, estas são demandas válidas. Se hoje o Egito é um caos, há um ano atrás as multidões foram às ruas pedir a queda de um ditador. Oras, quem é contra a queda de ditadores? Seria justo dizer que pediam uma platitude? Certamente não – e o mesmo pode ser dito do que pediram as ruas aqui no Brasil.

Que no Brasil os poderosos acostumaram-se à impunidade é um fato tão conhecido quanto lamentável; que os serviços são péssimos também é fato notório. Infelizmente, porém, nosso ato reflexo era ver nessa denúncia um ato retrógrado. Por isso as Duas Semanas de 2013 foram tão importantes: falaram alto o que estávamos nos acostumando a esquecer. É importante que gritem o óbvio quando nossas análises, mesmo que corretas, o escondem de nós. Se alguém nos diz – uma, duas, três vezes – que dois mais dois são quatro, nos diz uma obviedade; se nos diz pela quarta vez, porém, talvez nós devamos rever nossos cálculos.

Em resumo, se as propostas de como fazer vindas dos manifestantes não são boas, mais importante são as reivindicações sobre o que fazer. Mesmo com todos os avanços, é preciso retornar ao problema da corrupção e dos maus serviços. Já avançamos muito no combate à corrupção, na expansão dos serviços públicos e até em sua qualidade, em certos aspectos, mas a mensagem das ruas é que isto precisa avançar mais rápido. Para os que entendem um mínimo de política e economia, tão acostumados a olhar o povo de cima, a tarefa é propor como fazer isso. Não importa que as opções apresentadas pelas ruas sejam ruins; foram os primeiros rascunhos de possíveis soluções. As outras propostas devem ser defendidas, argumentadas ante e para o grande público. Se algo ficou claro, é que o povo pode e quer participar da política. Se discordamos do que, em massa, os brasileiros querem, tentemos convencê-los de nossas posições.

Não será fácil. Muitos dos avanços implicarão em sacrifícios que não queremos fazer. Persevera a ideia, falsa, de que, eliminando a corrupção e cortando gastos, teremos recursos suficientes. A solução, porém, passa pelo debate mais amplo. É preciso que as boas ideias sejam mais inteligíveis. Não é possível nem necessário escrever um só artigo que convença a todos, mas sim que se desmonte este clube fechado dos que discutem economia e política. É um trabalho de anos; agora, o importante é começar.

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