Alguns problemas em uma coluna de Drauzio Varella

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Admiro o Drauzio Varella. Sua habilidade de falar ao público amplo às vezes atrai antipatia, mas eu a julgo notável e muito bem aplicada em causas importantes. Ainda assim, na sua coluna na Folha do dia 7 de setembro não pude deixar de perceber algumas afirmações dúbias. Por exemplo, ele afirma que o programa Mais Médicos é uma resposta improvisada aos protestos de junho:

Talvez por falta do que propor nas duas primeiras áreas [transporte público e educação], decidiu atacar a da saúde. A população se queixa da falta de assistência médica? Vamos contratar médicos estrangeiros, foi o melhor que conseguiram arquitetar.

Isto, porém, não pode ser verdade, porque o anúncio do programa foi feito ainda em maio. O Mais Médicos, por sinal, seria uma péssima resposta eleitoreira, pois focaria no público-alvo errado. Os manifestantes eram jovens urbanos, preocupados com os problemas da saúde em sua cidade, mas o programa atende populações remotas cujos problemas raramente aparecem nos jornais. Ademais, o programa já era polêmico, de modo que não consistiria em um bom aplacador de ânimos. Eu mesmo me assustei quando a presidente mencionou o programa no seu discurso emergencial. Felizmente, a polêmica inicial parece superada.

A pergunta que o doutor faz (“Se o problema é antigo, por que não foi encaminhado há mais tempo?”) é pertinente, mas também capciosa, porque se aplica a qualquer questão emergencial e a qualquer momento. Drauzio se pergunta isto em 2013, mas poderia tê-lo perguntado em 2005 ou 1999 e a o tom de acusação sempre estaria presente. Mesmo que questão tivesse sido resolvida em 1999, é certo que ainda teríamos problemas ao mesmo tempo antigos e emergenciais no Brasil de hoje, aos quais poderíamos direcionar o mesmo questionamento.

Isto não tira o valor da pergunta. Tampouco a resposta que propõe – “a área da saúde nunca foi prioritária nos últimos governos” – é necessariamente errada. Entretanto, entregar-se rapidamente a esta resposta traz quatro problemas. Primeiro, esconde outra questão: se a saúde não foi a prioridade, o que foi? Os governos trabalharam em muita coisa durante este tempo. Desde antes de Fernando Henrique os governantes no Brasil gerenciam urgências quase intratáveis, da hiperinflação à miséria, da desigualdade à violência, das reformas institucionais à saúde. Tudo isso, e ainda mais coisas, deve ser prioridade; infelizmente, porém, quanto mais causas prioritárias há, menos prioritárias as causas são. Se a saúde parece menos prioritária é porque há bastantes concorrentes.

Segundo, quando Drauzio pergunta se o leitor “lembra de alguma medida com impacto na saúde pública adotada nos últimos anos”, urge indagar-se o que seria uma “medida de impacto”. Se for uma medida digna da memória do leitor, suponho que deva ser grandiosa e visível. Entretanto, não me surpreenderia se as pequenas mudanças, feias, entediantes e não escaláveis, fossem mais importantes que as mais pomposas. Tais avanços, por sinal, podem já estar em execução mas, por sua natureza, são menos visíveis. Estas mudanças estão sendo feitas? Não sei, mas sei que ninguém as investigou.

Este é o terceiro problema: a busca de médicos do exterior não foi a primeira medida tomada. Considere o salário dos médicos no interior, que pode ser três vezes o de um médico na capital e maior que o do prefeito! Para chegarmos a tais valores houve muitas ofertas durante anos. Outra tentativa desesperada foi tomada em Sobral, onde médicos são trazidos por aerotáxi para a cidade. Muito foi tentado antes de se apelar para os estrangeiros.

Tais ofertas, por sinal, pesam muito nas contas municipais, o que nos leva à quarta questão. Tanto a União quanto os estados e os municípios são responsáveis por alguma parte da saúde pública; identificar a responsabilidade de cada um é um desafio, assim como intermediar a comunicação entre eles. Melhorar a saúde pública passa por considerar os desafios da própria federação.

No fundo, há um problema maior que temos medo de anunciar: prover saúde pública de qualidade em um país como o Brasil não é fácil e não será rápido. Saúde pública é um dos serviços mais caros e complicados que um governo pode prover. Atendimento e remédios são caros, tratamentos são pesadamente regulamentados e há um custo alto de fiscalização. Fazer isso funcionar bem em um país continental, com regiões de difícil acesso, renda per capita baixa e grande parte do orçamento travada é algo hercúleo. Para piorar, quanto melhor for o sistema público de saúde, mais caro ele será, pois mais usuários terá. Não discordo que bons gerentes – ou mesmo estadistas – tragam mudanças positivas, mas o problema é muito maior que qualquer liderança individual.

Ademais, é bom termos certa perspectiva global. Por pior que seja, o sistema de saúde brasileiro é uma obra enorme que ajuda um tanto nas horas de desespero. Durante a maior parte da minha vida, era minha única opção e muitos familiares meus dependeram e ainda dependem do SUS. As filas são revoltantes, o atendimento nem sempre é bom (frequentemente, é péssimo) e as esperas podem ser longas; mesmo assim, penso quão desesperador seria não ter essas mínimas opções. A maior parte da população mundial, e boa parte dos brasileiros, na verdade, não as tem. É instrutivo se pôr no lugar deles.

De maneira alguma tenho mais conhecimento sobre saúde pública que Drauzio Varella, naturalmente. Ainda assim, acredito que ele foi impreciso em sua última coluna, e julgo que precisão é uma necessidade se quisermos saber quais são as causas dos problemas na saúde. Também é válido reconhecer que, por incompleto que seja, o sistema de saúde pública têm feito uma diferença relevante na vida de muitas pessoas, e seu talvez maior defeito é não conseguir tornar essa relevância mais universal. A saúde no Brasil é lastimável mas é preciso ter as ideias no lugar para sairmos desta situação.

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